terça-feira, 24 de julho de 2012

Maus agouros e uma galera de fé no rock...


Lembram do filme A Encruzilhada, no qual um bluesman americano faz pacto com o diabo para ter sucesso e se ferra depois, com a perseguição do tinhoso? Quem for religioso que faça suas preces, pois vou contar uma história real e intrigante, vivida no Planalto Central do Brasil... Hê, hê, hê, hê,  hê, hê,  hê, hê,  hê!

Curiosidade: A cruz próxima ao memorial JK marca o local 
da primeira missa  de Brasília. O monumento deu origem 
ao nome da cidade do Cruzeiro, de onde surgiu a banda 
Cruzbúrbio, por ser subúrbio da Capital.
Cleiber Mota toca violão e canta na banda Casa Velha, de blues. Ingressou também na  Senso Morto, de hard core, na função de vocalista. Passou ainda pela Os Containers, outra respeitada banda de hard core, na qual o amigo Marcos Barata continuou como cantor. Não lembro se foi um ou outro, Cleiber ou Marcos, quem perguntou se eu conhecia o Bené, caminhoneiro negro e grandalhão, adepto de costeletas imensas, estilo Elvis Presley, e de um corte de cabelo capacete, parecido ao do Jimmy Hendrix, mestre atemporal da guitarra. O dono da pergunta, sobre se eu conhecia Bené, se aproximou do caminhoneiro grandalhão em 2012, na cidade do Recanto das Emas, Distrito Federal, atraído pela canção O cão me persegue, de uma obscura banda oitentista brasiliense chamada Cruzbúrbio. Dessa banda ele nunca tinha ouvido falar, mas Bené disse que me conhecia antes mesmo de eu ter criado o Zine Oficial, revista de bolso dedicada ao rock do DF e do Entorno. Disse também que pelo site do Zine ele acompanhava as bandas da cena atual. Reza um velho ditado que águas passadas não movem moinhos. Outra pérola popular jura que água que passarinho não bebe faz mal. No entanto, algumas histórias, destiladas no ponto certo, servem de alerta para os ouvintes, ou leitores. Como pano de fundo, as lições são muitas, que cada um tire a sua. Tentarei dar um exemplo, ilustrando através da história da Cruzbúrbio, que o rock está mesmo incrustrado na alma candanga, passando por bandas de sucesso, mas também, e principalmente, por grupos que jamais priorizaram o estrelato, apenas curtir seu som, mesmo à pecha de maldito. Em caso de glória, tudo bem. Em caso contrário, amém.

Sábado, dia 21 de julho de 2012, fui surpreendido em um churrasco organizado para reunir uma galera das antigas. Nessa festa, o compadre Chicão assumiu o controle do aparelho de som e dedicou a mim uma música da banda Coma Alcoólico. Não, eu não tinha bebido demais! Chicão tocava bateria na Coma Alcoólico e eu curtia os shows pelo Cruzeiro, Taguatinga, Ceilândia, Sobradinho e onde quer que a banda fosse tocar, valendo-me da desculpa e da saúde que a idade permitia, sempre na manguaça, junto com os integrantes da Coma Alcoólico. No entanto, a gravação que Chicão colocou para rolar no dia do churrasco, anos após o fim da banda, não estava com a letra completa, que discorria sobre o fim trágico de vários ídolos do rock e da devoção de fãs, gerações após gerações. Vasculhei na internet e descobri outra gravação dessa música, chamada Vento dos Anos Sessenta, feita em 2007 e postada no Youtube. Também não se trata da versão original. A Coma Alcoólico começou a acabar no final dos anos 1990, com a saída do primeiro vocalista, Adalberto, o Dôba, que virou gerente de uma agência do Unibanco e já não podia manter-se bêbado, à altura do nome da banda.

Com o nome mudado para Cruzbúrbio, por ter surgido na cidade do Cruzeiro, subúrbio de Brasília, o grupo Coma Alcoólico resistiu com Tourão no vocal, principal letrista e talvez o mais perturbado pela cachaça, conseguida à custa de interas ou, segundo algumas lendas, de garrafas recolhidas em despachos de macumba, oferendas religiosas deixadas ao longo da via férrea após a estação Rodoferroviária, local não muito distante de sua residência, um apartamento funcional no Cruzeiro Novo. A última notícia que tive dele foi de que tentou explodir a casa para a qual se mudou, em Samambaia, amarrado a um botijão de gás. Não sei se isso foi verdade, mas também não duvido de nada. O gaitista da banda, apelidado de Careca, continuou andando pelos bares do Cruzeiro, jurando que se tornara professor de história e abandonado de vez suas pretensões musicais, mas sempre com a gaita a tiracolo. Que eu saiba nenhum amigo próximo questionou ou procurou certificar-se de seu possível rumo profissional, ou de sua vida longe dos bares e dos palcos. Em paralelo, anos após tornar-se caminhoneiro, o guitarrista Bené, afastado dos palcos, enfrentou uma contenda com o amigo Ticão, militante trotskista e fã da banda. O desentendimento não foi político, nem por causa da falta de shows. Surgiram divergências profissionais depois do arrendamento de um caminhão caçamba. Fui chamado para testemunha, não de Jeová, mas de um acordo amigável, pois a crise na associação entre os dois foi agravada por interferências da companheira de Bené, uma baixinha marrenta, da qual evito até falar o nome. Há relatos imprecisos de que ela, por ciúmes ou acidente, teria ateado fogo no Bené, usando como combustível uma garrafa de vodka. O incidente poderia ter deixado órfão um periquito criado pelo casal, ave  carinhosamente batizada como Elvis, singelo tributo ao eterno Rei do Rock.

O tio de Bené, João, era baixista da Coma Alcoólico e montou um estúdio em sua casa, em Taguatinga, para a banda ensaiar. Participei de muitos desses ensaios e minha função era buscar conhaque no bar da esquina, um estabelecimento sombrio, infestado de cabeças de alho para espantar mau olhado. Mandinga nenhuma, por outro lado, faria a Cruzbúrbio alcançar o sucesso. Não tinha jeito da banda dar certo, pois os integrantes priorizavam a farra ao invés da carreira. O tio de Bené saiu puto do grupo, queixando-se do investimento que tinha feito para montar o estúdio, já que o sobrinho e os companheiros não estavam levando a coisa a sério. Os ensaios mudaram para um condomínio próximo a Sobradinho, na casa do irmão do guitarrista base Jacaré, que trocou de função e passou a empunhar o baixo. Foi nesses ensaios que surgiu o grande hit Paula Vagabunda, homenagem a uma amiga e fã da banda. Paula adorava, sem pudor, a letra da música, na qual ela era descrita como uma groupie insaciável, insinuações as quais me reservo o direito de ficar calado.

Jacaré, por mais que parecesse estar sempre de brincadeira, era, junto com João, um dos caras que realmente levava a banda a sério. Chicão, cansado dos companheiros possessos por farras, largou as baquetas após seu casamento, sendo substituído por Júnior, irmão de Bené. Com a formação desfigurada, a Coma Alcoólico, rebatizada de vez como Cruzbúrbio, foi convidada, por conexão de forças ocultas, para tocar em uma festa junina na Igreja Nossa Senhora das Dores, no Cruzeiro Velho, por volta do ano 2000. As escadarias da mesma igreja testemunharam o começo da carreira de Renato Russo e Fê Lemos, com a lendária banda Aborto Elétrico, mais ou menos uns vinte anos antes. Os tempos eram outros e o padre também. O repertório recheado de mensagens nada cristãs fez com que banda Cruzbúrbio chocasse os fiéis. O administrador interino da pacata cidade do Cruzeiro, se não me engano o empresário Miguel Lunardi, subiu no palco gritando para que os caras parassem a apresentação: “Tá bom, tá bom!”. Jacaré olhou para o político e continuou a tocar, com a seguinte justificativa: “Se tá bom, vamos mandar outra!”. O padre, então, apelou para o poder que lhe cabia e mandou desligar a energia elétrica do equipamento, relegando o grupo musical à escuridão.

Sempre gostei daquela turma de roqueiros endiabrados, independente do nome, Cruzbúrbio ou Coma Alcoólico, por causa da espontaneidade e das formações inusitadas. Além de um caminhoneiro, um gerente de banco, um funcionário público dono de supermercado, um condutor de vans piratas, um funcionário do Jornal de Brasília, um policial militar, e um pesquisador de dados sociais, passaram também vagabundos assumidos pela banda e os atritos eram inevitáveis. Não lembro o nome de todos, mas garanto que era só gente boa.Tomara tenham se encaminhado, espalhados por diversas cidades do Distrito Federal.  Desencontros entre os integrantes acabaram selando o destino do grupo, mas o entusiasmo de quem ouve regravações de suas músicas, anos após os remanescentes nem tocarem mais ao vivo, me deixou feliz.  É bom saber que o rock de alma despretensiosa continua assombrando as quebradas por aí. Ainda mais com uma música tão apropriada, quanto O cão me persegue. Tenho, em minha mente torpe, a convicção de que os caras não fizeram sucesso não por falhas técnicas ou condutas politicamente incorretas nos palcos. Acho que foi praga do padre lá do Cruzeiro. Ou coisas das encruzilhadas da vida. 


(Tomaz André, www.zineoficial.com.br)


Curtam o link de O cão me persegue, da banda Cruzbúrbio, com participação de Bené (voz e guitarra), Jacaré (guitarra base) e Júnior (bateria)