Em curta-metragem produzido no Distrito Federal, o veterano punk paulista Ariel Invasor, vocalista das bandas Invasores de Cérebros e Restos de Nada, dois pilares do punk rock brasileiro, faz papel de Carlos Carlos Drummond de Andrade, em adaptação de crônica escrita pelo próprio Drummond: "João Brandão Adere ao Punk". A direção do curta é do punk brasiliense Sangue Ralo, baterista da banda Canibais e professor da rede pública de ensino. Nas filmagens figuram importantes nomes da cena punk candanga como, por exemplo, o cartunista Broba, ex-vocalista e letrista da banda Cegos, Surdos e Mudos. Para o papel da personagem João Brandão foi escolhida uma figura ímpar da contra-cultura do Distrito Federal, o poeta J. Pingo.
A personagem João Brandão ganhou vida pelas mãos de outro poeta, e também cronista, o mineiro Carlos Drummond
de Andrade, que fez uma análise contundente sobre o movimento punk no Brasil. O
texto de 1983 surpreendeu pelo entendimento demonstrado pelo autor sobre o
assunto, sem o preconceito que muitos intelectuais e jornalistas imputavam ao
movimento.
Drummond morou anos no Rio de Janeiro e
de lá alavancou sua carreira. Após a morte, o escritor ganhou estátua na Cidade
Maravilhosa e todas as pompas de cidadão carioca, sem jamais esquecer sua herança
mineira, com especial atenção ao que ocorria na vida política e social do País.
Com propriedade de quem conhecia o Rio e os modismos lançados a partir da metrópole,
festiva para a burguesia e sede de uma mídia poderosa, o escritor alfinetou os “moderninhos”
com sua crônica “João Brandão Adere ao Punk”, publicada ainda sob o regime
militar, no Jornal do Brasil. Na crônica, Drummond apresenta João Brandão, um estudioso
de fenômenos sociais, modismos e frivolidades, que passa a se dedicar à
pesquisa do punk. As conclusões da personagem ilustram
um pouco os motivos pelos quais Carlos Drummond de Andrade merece estar no topo
da lista de autores mais lúcidos da literatura nacional. Na fala de João
Brandão, Drummond dá respostas a uma entrevista fictícia, que transcreverei a
seguir, suprimindo as perguntas.
João Brandão diz:
“Ainda
não cheguei a nenhuma conclusão, Mas suspeito que o punk veio atender às
necessidades do País nesta conjuntura (...) Não me refiro, é claro, a
modalidade do punk cultivado pelas classes alta e média da Zona Sul. Este é um
punk de espírito e camisetas importados, jaqueta de couro valendo um punhado de
dólares. É artigo de importação, que deve figurar na lista de produtos
proibidos pelo Delfim (Nota: ex-ministro do
Planejamento, no governo Figueiredo). Refiro-me ao outro, o de camiseta
adquirida na rua Senhor dos Passos e rasgada. O moço não a rasgou para
demonstrar maior identificação com o punk: ela está rasgada porque é velha e
muito batida. Em suma, o punk pobre. (...) Faz muita diferença, porque o punk
dos pobres, suburbano e sofrido, revela no seu despojamento, que para ser punk
é necessário enfrentar uma barreira e abrir mão de toda a sociedade de consumo.
Ao passo que o Leblon é consumista, no esquema clássico. (...) Não importa que
a sociedade seria dos dois grupos e os tolere igualmente, enquanto a indústria
fabrica objetos sofisticados para o uso do punk de salão. Importa é a atitude
deles diante da vida. Um finge contestar, outro contesta mesmo.(...) Porque os
punks malditos sabem que, passada a moda, eles terão de inventar outra forma de
lazer que seja protesto, ou outra forma de protesto que seja lazer, ao passo
que os ricos não estão ligando para isso, o futuro deles está garantido, na
medida em que podem garantir alguma coisa no mercado de vida. Então eu
simpatizo com o punk despojado, mau poeta e mau cantor, mas empolgado pela
missão que se atribui, de destruir a ordem conservadora por meio da música, do
grito, do gesto e do anarquismo primário.”
Voltando aos meus comentários, a publicação da crônica “João Brandão
Adere ao Punk” em 1983, no então poderoso Jornal do Brasil, ficaria distante
para novos punks, aqueles que surgiram depois da moda a qual Drummond se referiu,
se trechos não tivessem sido reproduzidos em diversos fanzines ao longo de anos.
Depois de ler a crônica pela primeira vez, apresentada por um amigo engajado no
movimento, fiquei a imaginar a personagem e o autor com imensos topetes moicanos,
ou outro visual que identificasse os dois como punks. O tempo passou rápido. Enquanto arquivei em um
ponto obscuro as imagens que a leitura despertou em meu cérebro, uma turma do
DF resolveu, mais uma vez, trazer João Brandão à luz... Luz, câmera e ação! Sob
a direção do amigo Grilo, atualmente baterista da banda candanga Os Canibais,
terminaram dia 09 de junho de 2012, sábado, as filmagens do Curta “João
Brandão Adere ao Punk”, com trabalhos técnicos da produtora UP Filmes. Grilo
assina a direção dos trabalhos como Sangue Ralo. Assina também o roteiro. No
elenco, fazendo o papel de Carlos Drummond de Andrade, está o punk paulista Ariel, vocalista das bandas Restos
de Nada e Invasores de Cérebros, dois pilares do
punk nacional. O poeta e ativista cultural brasiliense J. Pingo também integra
o elenco, fazendo o papel de João Brandão, personagem central da trama. Os figurantes do curta são conhecidos na cena
punk candanga, entre os quais, integrantes das bandas The Insult, Mackacongs
2099, ARD, Marmitex S.A. e Canibais.
Juntamente com a banda brasiliense
Galinha Preta e a paulista Invasores de Cérebros, todas as bandas citadas no
parágrafo anterior participaram de um grande show a partir das 18 horas no Mercado
Cultural Piloto, localizado no Jardim Botânico. Durante as apresentações foram captadas
as cenas finais do curta “João Brandão Adere ao Punk”, baseado na crônica
homônima de Drummond de Andrade. Quem compareceu pode se orgulhar no
futuro de ser figurante desse filme histórico. A “cereja do bolo” da festa, no
entanto, é a participação do cartunista candango Broba, morador da cidade de
Ceilândia. Rai, como Broba também ficou conhecido no movimento punk do DF e
Entorno, fez contribuição aleatória ao que foi escrito por Drummond. Com traço
forte, o cartunista ilustrou com visão própria, e bastante apropriada, a crítica
punk aos status quo. Além de animações de seus desenhos, inseridas na edição final
do curta, Broba fez figuração como zelador do prédio de João Brandão,
participando de todas as captações de imagem.
Para finalizar, devo dizer com angústia
que jamais saberei de detalhes preciosos. Após conversar com o diretor Grilo Sangue
Ralo na manhã que antecedeu a finalização do curta, tenho certeza que peculiaridades
do filme “João Brandão Adere ao Punk” não estarão na edição final, mas nas lembranças de quem abraçou a causa. Foram feitas tomadas quarta-feira, dia 07 de
junho de 2012 no centro comercial Conic e no Bar Beirute, redutos tradicionais
da boemia maldita em Brasília, com boca livre e bebida à vontade em um banquete
oferecido pelo dono do Beirute, o senhor Chiquinho, empolgado com o filme. Na
quinta feira a equipe técnica e o elenco seguiram para novos trabalhos em
locais onde permaneceriam fazendo filmagens também na sexta e no sábado. Esses
locais foram o Mercado Cultural Piloto, espaço cultural localizado na Região
Administrativa do Jardim Botânico, e ruas de São Sebastião, cidade próxima. Muita
coisa deve ter rolado entre os deslocamentos do Jardim Botânico para São
Sebastião, dois exemplos, cada qual com sua carga, de como nas cercanias de
Brasília foram instalados núcleos habitacionais sem infraestrutura de
saneamento ou serviços públicos, esquecidos anos a fio pelo governo. Repousa aí
uma coincidência: O Rio de Janeiro, também conhecido como “A Cidade de São
Sebastião”, foi de onde Carlos Drummond de Andrade disparou para todo Brasil as
percepções da personagem João Brandão sobre o movimento punk e seu grito contra
desigualdades sociais. Com as filmagens do curta dirigido por Grilo Sangue
Ralo, a Cidade de São Sebastião, no Distrito Federal, e os condomínios com
casas elegantes no Jardim Botânico, repaginam a obra de Carlos Drummond de Andrade, que se recusou entrar para a Academia
Brasileira de Letras, de maneira que faria o autor aplaudir o filme
com entusiasmo. A periferia de Brasília, com ilustres convidados de Goiás e São
Paulo, invadiu a corte com punks verdadeiros, sem pedir licença.